I DIÁLOGO ENTRE OS SETORES PÚBLICO E PRIVADO

Local: Brasília, Hotel Royal Tulip

Data: 18 de setembro de 2018

Tema: “O Valor Processual das Informações de Inteligência Financeira Obtidas por Meio da Rede de Egmont”

A primeira reunião de trabalho do Instituto de Cooperação Jurídica Internacional (ICJI), lançado em coquetel no Escritório FeldensMadruga, no dia 17 de setembro, contou com a presença de 42 profissionais do Direito de todo o país, entre eles advogados, pesquisadores e acadêmicos, policiais, integrantes do Ministério Público, autoridades do Poder Executivo, entre outros. O evento da série: “Diálogos entre os Setores Público e Privado”, teve como tema: “O Valor Processual das Informações de Inteligência Financeira Obtidas por Meio da Rede de Egmont”. “Trabalhamos com o princípio de que há de existir espaços para o diálogo público-privado sobre o Direito e sua aplicação prática, para além dos casos e processos concretos”, afirmou Antenor Madruga, sócio fundador do ICJI e mediador da mesa, ao abrir os trabalhos.

Em seguida, Bernardo Mota, responsável no Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) iniciou falando sobre a importância do grupo para o trabalho desenvolvido pela unidade de inteligência financeira. “Trouxe mais provocações e inquietações que respostas”, enfatizou. O Grupo de Egmont foi criado pelos Estados Unidos (EUA) e a Bélgica, em 1995, de maneira informal e ao largo de uma convenção internacional. O Grupo, que hoje conta com mais de 150 países-membros, funciona como centro de debates, troca de informações e experiências, num espaço menos rígido e burocratizado, buscando maior eficiência no combate à lavagem de dinheiro e ao crime organizado transnacional.

Existem basicamente dois modelos de Unidades de Inteligência no Grupo Egmont: o administrativo, como é o caso do COAF brasileiro, e o investigativo-repressivo, adotado por Portugal, por exemplo. Bernardo ressaltou que as informações obtidas por meio de Egmont têm importante valor processual, mas exigem cuidados na sua utilização. Por isso existem princípios de segurança na circulação dessas informações entre os membros do grupo, bem como princípios que devem ser observados, sob pena de sofrerem constrangimentos políticos e reputacionais aplicados por meio de um comitê do próprio Grupo de Egmont.

“Temos a obrigação de encaminhar informações financeiras quando solicitados pelas autoridades competentes. A existência de Egmont torna esse trabalho muito mais eficiente, seguro e rápido. Mas é importante entender que elas sirvam para fins de tratamento e análise como base de um processo de tomada de decisão das autoridades que as solicitam”, explicou. Um dos pontos fundamentais da discussão seria, portanto, entender a diferença entre informações de inteligência, que são os dados coletados por meio do Grupo de Egmont, e uma prova no âmbito de um processo. “Creio que os dois valores podem coexistir, mas o COAF não tem controle sobre o uso feito das informações prestadas”. Segundo Bernado, há um bom diálogo com as autoridades com relação ao uso feito das informações de inteligência prestadas pelo COAF, sobretudo com a Polícia Federal e o Ministério Público Federal, principais clientes demandantes desse tipo de dado. Concluiu, entretanto, chamando a atenção para os riscos de desvios de finalidade e vazamento das informações trocadas entre as Unidades de Inteligência Financeira (UIFS) por meio da Rede de Egmont.

CHOQUE DE DIREITOS

Em seguida, a Professora Catedrática de Direito Penal da Universidade de Coimbra e primeira mulher a ocupar a posição de Ministra da Administração Interna de Portugal, Anabela Miranda Rodrigues trouxe uma visão acadêmica sobre o assunto. Iniciou expondo o contexto internacional atual, no qual a nova criminalidade econômica produz novos atores e impõe novas dinâmicas e arranjos institucionais por parte do Estado para dar conta de suas obrigações. Ressaltou que, para reagir adequadamente às complexas e sofisticadas estruturas

de criminalidade no âmbito empresarial, é imprescindível a colaboração dos particulares com o Estado, que não mais está em condições de, sozinho, prevenir e reprimir os delitos econômicos, tal como a lavagem de dinheiro. Nesse contexto, segundo a professora portuguesa, deve-se cotejar o direito de liberdade geral de ação, que toca a todo ser humano, com os interesses coletivos, de justiça social, que devem ser defendidos pelo Estado.

Entretanto, alertou para o possível conflito advindo do uso de informações colhidas mediante a colaboração do acusado com o princípio da não-autoincriminação (nemo tenetur se ipsum accusare), garantia fundamental do processo penal, internacionalmente consagrado. “É legítimo o uso de documentos obtidos por meio de colaboração como prova no processo penal?”, questionou. Segundo ela, a dignidade humana tem um valor inerente que não pode ser transacionado em hipótese alguma. Os direitos fundamentais por um lado e a eficácia da ação de repressão ao crime organizado do Estado, do outro, seriam as duas pontas desse conflito. No seu entendimento, entretanto, informações colhidas pelo Estado em situações nas quais o cidadão não pode se negar a fornecê-las, como é o caso das declarações de imposto de renda, possuem um fim preventivo em sua coleta e portanto sua transformação em provas no processo penal constitui um desvio dessa finalidade, que deve ser coibido.

A Secretária Adjunta de Cooperação Internacional do Ministério Público Federal (MPF), Denise Abade, trouxe a perspectiva dos órgãos de investigação, demandantes da maior parte das informações obtidas por meio da Rede de Egmont. Segundo ela é preciso desmitificar o aparente antagonismo entre direitos subjetivos, defendidos pelos advogados, e a noção de eficiência persecutória. Em determinadas situações, segundo a Procuradora, acontecem “choques de direitos”, e os da coletividade devem prevalecer sobre o direito de propriedade e o direito à intimidade do investigado. A Procuradora Regional da República defendeu que as informações trocadas pela Rede Egmont devem ser usadas como prova e valoradas no processo penal como qualquer outro material probatório.

DESAFIOS DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL

O debate que seguiu iniciou com a professora da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP), Heloísa Estellita, trazendo a perspectiva da pessoa humana para a discussão, conforme ela mesma enfatizou. Citando o professor Luís Greco, disse que não se deve apenas investigar, como se faz tradicionalmente, a legitimidade da pena perante o condenado, mas principalmente a legitimidade da abertura do processo penal em face do acusado. De modo mais concreto, disse que a cooperação internacional falha na proteção dos direitos de inocentes, sobretudo em virtude da ausência no Brasil de uma lei de cooperação.

Mencionando a nova Lei de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/2018), lamentou a expressa exclusão da aplicação da Lei quando o tratamento dos dados se der para fins exclusivos de segurança pública, defesa nacional, segurança do Estado ou atividades de investigação ou repressão de infrações penais (Art. 4º, inciso III). Estellita denunciou que, em razão da ausência de uma lei de cooperação internacional, praticamente todas as medidas de cooperação entre os Estados em processos de investigação acabam por violar o princípio da legalidade. Nesse contexto, a pessoa seria tratada como objeto, e não como sujeito de direito.

Após as exposições, iniciou-se o debate, que se mostrou intenso, com a participação de diversos presentes. Membros dos órgãos de regulação e persecução, como Polícia Federal, MPF, Departamento de Recuperação de Ativos do Ministério da Justiça (DRCI), Policiais, e advogados compartilharam suas experiências profissionais relacionadas ao tema da reunião, ressaltando a importância do intercâmbio internacional de informações entre os órgãos de inteligência financeira, em um número crescente de casos.

O Delegado da PF Márcio Anselmo esclareceu que os Relatórios de Inteligência são considerados, por parte da persecução, “notícias de fato”. De forma semelhante, outros participantes da Polícia Federal colocaram que as informações de inteligência devem ser utilizadas como indícios no processo penal, como preparação e fundamentação do pedido de quebra de sigilo.

Os advogados presentes, por outro lado, apontaram para a sensibilidade do problema da conversão das informações de inteligência em prova no processo penal. Nesse sentido, Antenor Madruga sublinhou a necessidade de se definir a amplitude e o momento para o exercício de defesa. “Como um cidadão pode tomar conhecimento de todas as informações de que o Estado dispõe a seu respeito? Essa é uma questão importante porque só assim seria possível o exercício pleno do direito de defesa”, enfatizou.

O Professor e sócio-fundador do ICJI, Manuel Valente, destacou o princípio da vinculação à finalidade do uso das informações, dizendo que o combate à criminalidade econômica não pode ser um fim acima de qualquer outro, sob pena de destruirmos o Estado de Direito tão arduamente construído.

Links de interesse:https://egmontgroup.org/en/news

http://www.fazenda.gov.br/orgaos/coaf

http://www.fatf-gafi.org/



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